Em 2023 até outubro, foram pagos R$ 82,25 bi, 31% a mais que em todo o ano passado
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A possível extinção ou, ao menos, mudança nas regras do juro sobre capital próprio (JCP) levou empresas a acelerar o pagamento do provento neste ano, no esforço para aproveitar a vantagem tributária do mecanismo, que voltou a entrar na pauta de ações do governo federal para aumentar a arrecadação.
Qualquer ajuste deve afetar as companhias em diversas frentes, na gestão dos resultados, no acesso a recursos e na maneira como remuneram seus acionistas, o que, em último caso, pode reduzir significativamente o interesse em algumas estrelas da bolsa brasileira.
Levantamento da fintech Meu Dividendo aponta que o total de JCP distribuído até outubro de 2023 já soma R$ 82,25 bilhões, 31% a mais que o pago em todo ano passado, que foi muito expressivo na distribuição de proventos. Além disso,a proporção em relação ao dividendo cresceu significativamente, de 25% do total para 47% do total.
“Temos casos de empresas que distribuíam exclusivamente dividendos e neste ano só distribuíram JCP. Tivemos empresas que distribuíam os dois e migraram para o JCP”, afirma Wendell Finotti, fundador e presidente da plataforma Meu Dividendo.
Mecanismo criado em 1995, na esteira das mudanças que começaram como Plano Real, o JCP, diferentemente do pagamento de dividendos, não está livre de impostos para quem recebe. No entanto, garante um benefício fiscal para quem distribui.
A possibilidade de mudanças já era assunto do governo anterior e voltou à discussão nas últimas semanas. Um texto que ajustava a estrutura do provento chegou a ser inserido no projeto de lei de tributação dos investimentos offshore e dos fundos exclusivos, o PL das offshores. Entretanto, um descasamento de ideias entre o relator do projeto na Câmara, o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), e o governo acabou tirando o trecho do texto final. Procurado,o deputado não respondeu até o fechamento desta edição.
O crescimento dos riscos de o governo federal não conseguir zerar o déficit fiscal em 2024,
entretanto, fez com que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, voltasse a citar o mecanismo como uma das prioridades na economia. Haddad disse que conversou com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e abordou o projeto de lei que trata da mudança no JCP.
A ameaça sobre o JCP acompanha outra mudança, a taxação de dividendos, tratada como inevitável — a cobrança já é um padrão na maioria dos países. A medida tornaria indiferente cada provento para o acionista, mas não para a empresa. O que aumenta a pressão sobre a forma e o tamanho do ajuste. Nas últimas semanas a discussão pareceu caminhar para uma solução acordada, com um ajuste no atual modelo, no lugar de sua extinção por completo. A intenção seria reduzir qualquer “injustiça” sem tornar o investimento nas empresas menos interessante.
“O sistema tributário influencia como as empresas se financiam e isso é feito, em maior escala, através de dívida, porque a incidência de imposto é menor no pagamento de juros. O JCP deveria ajudar a equilibrar isso, isentando uma parte da distribuição, mas existem brechas, o que faz com que as empresas distribuam proventos de forma não alinhada ao contexto de investimento”, explica Manoel Pires, coordenador do Núcleo de Política Econômica e do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGVIbre).
Quem defende ajustes no JCP usa como exemplo mecanismos de remuneração ao acionista que são utilizados em outros países, principalmente na Europa. Por lá, o ACE (sigla em inglês para “Allowance for Corporate Equity”, ou provisão para patrimônio corporativo, em tradução livre) incentiva os investimentos como contrapartida à isenção.
“O ACE modela o instrumento de forma mais eficiente, porque atrela a isenção fiscal à evolução do balanço patrimonial, reduzindo a base de cálculo,e mais ligado ao Capex [investimento]”, acrescenta Pires.
Não há uma estrutura uniforme adotada por todos os países que aderiram ao ACE, mas a intenção principal é tratar, em termos tributários, o uso do capital próprio com o mesmo peso do endividamento para fins de investimento. Entretanto, há um limite para o uso e uma série de regras que calculam o tamanho do benefício fiscal atrelado ao uso do capital próprio para investimento.
De qualquer forma, com a discussão da mudança na tributação de proventos voltando a ganhar corpo, as empresas aceleraram os pagamentos do JCP, mesmo em setores que preferem o pagamento de dividendos. Até mesmo as estatais ampliaram significativamente a distribuição desde o ano passado.
Alguns setores, pelo modelo de receita, de gestão de caixa e pela previsibilidade do negócio são mais ativos no pagamento de JCP que outros. Os maiores destaques são as instituições financeiras, principalmente os bancos e seguradoras, e empresas de serviços públicos, como energia e saneamento. Um levantamento feito pela consultoria L4 Capital com as companhias listadas na B3 indicou que 53 empresas (com 68 ações diferentes negociadas) pagaram apenas JCP no acumulado de 12 meses até setembro, com destaque para os bancos nesse grupo.
“Para as empresas é melhor distribuir o máximo que der [em JCP] para abater do imposto de renda”, afirma Felipe Pontes, sócio da L4 Capital. “Tem um lado bom dele porque, de certa forma, estimula os bancos a aumentarem o capital deles.”O valor do JCP é calculado a partir do valor do patrimônio líquido multiplicado pela taxa de longo prazo (TLP).
As empresas são contra uma extinção do JCP, defendendo uma revisão do modelo. O receio é de que o impacto de negativo do menor abatimento no IR levaria a um aumento de endividamento de alguns setores.
“O JCP tenta resolver uma questão que é injusta com os investidores. Se eu pego dinheiro no banco, o pagamento do principal e dos juros é colocado como despesa. Se eu pego esse mesmo montante como os sócios, ele é registrado como distribuição de lucros, não reduz a base do imposto de renda e tem incidência de imposto”, afirma Pablo Cesário, presidente da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca). A Abrasca defende que a discussão deveria estar conectada a um debate mais amplo sobre a reforma da tributação da renda.
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban), em que estão presentes os principais pagadores de JCP, defende o mesmo ponto, uma discussão ampla sobre tributação do imposto de renda das empresas.“O modelo brasileiro vigente já é de uma tributação corporativa extremamente elevada, que é ainda maior sobre o setor bancário, mesmo com a dedução do JCP, que se aplica às pessoas jurídicas de forma geral”, diz a entidade, em nota. O ministro Fernando Haddad afirmou na semana passada que chegou a discutir com a Febraban mudanças no mecanismo.
O BTG Pactual fez um levantamento com 120 empresas sob cobertura do banco para avaliar os impactos de um possível fim do JCP partindo do cenário atual, ou seja, sem nenhuma outra mudança de IR ou na alocação de capital das empresas. Nesse caso, “os lucros consolidados cairiam 8%, mas as empresas que utilizam mais o mecanismo, como bancos e telecomunicações, sofreriam mais”, apontam Carlos Sequeira e equipe. “Os lucros consolidados nestes setores cairiam 17%.”